Olá, vaquinha!
Terminamos mais uma newsletter equilibrando os pratos da vida moderna. Cassimila já está de pijama, Sarah ainda está trabalhando. Essa é a magia dos nossos fusos horários e da nossa atividade deliciosa e não remunerada de escrever a fega para vocês.
Boa leitura!
Cassimila e Sarah
VACA PROFANA
Tem nomes que o Brasil tentou esquecer. E há nomes que, mesmo esquecidos por décadas, seguem gritando da margem com a força de quem nunca saiu de lá. Carolina Maria de Jesus foi uma dessas vozes. Voz que escreveria com papel achado no lixo, mas que atravessaria continentes. Que viveria cercada de silenciamentos, mas que nos deixou um eco literário impossível de apagar.
Nascida em 1914, em Sacramento (MG), filha de uma lavadeira, criada entre roupas alheias e livros emprestados, Carolina aprendeu cedo a ler e escrever — duas armas que usaria com uma lucidez imbatível. Em São Paulo, fez do barraco no Canindé sua trincheira e, com lápis em punho, começou a registrar o mundo. O que ela escreveu não era ficção, era denúncia. E virou história.
Quarto de despejo, publicado em 1960, vendeu 10 mil cópias na primeira semana. Foi traduzido em mais de 14 línguas. Ganhou destaque nos EUA. Derrubou estereótipos. Assustou políticos. Mas Carolina não era uma Cinderela da favela, como tentaram pintá-la — de lenço na cabeça, humilde, sonhadora. Carolina era uma mulher que batia de frente com Carlos Lacerda e defendia João Goulart. Que negava casamento para manter a própria liberdade. Que foi presa por estar lendo poesia na rua. Que compôs e lançou disco. Que criou sozinha os filhos. Que escrevia o que via, o que sabia, o que doía — e isso era muito.
Hoje, quando seu romance O escravo foi lançado postumamente, é quase um gesto de reparação — pequeno, tardio. Carolina deixou uma montanha de manuscritos inéditos, ignorados por editoras durante décadas. Preferiam o enredo da superação domesticada ao pensamento afiado de uma mulher preta, periférica e indomável.
Não foi à toa que a imprensa, a política, a elite cultural quiseram confiná-la à imagem de “favelada inspiradora”. Mas Carolina escrevia com raiva, com fome, com lucidez. Era uma cronista do colapso. E o colapso continua.
Ler Carolina em 2025 não é um exercício de nostalgia. É sobrevivência. É lembrar que a literatura brasileira não cabe nos seus cânones brancos. Que existe um país que se escreve em folhas de caderno escolar, achadas no lixo, com frases que cortam mais que navalha.
“Eles combinaram de me matar, mas eu combinei de não morrer”, escreveu Conceição Evaristo, outra gigante. Carolina, décadas antes, já cumpria esse pacto. (SM)
DINHEIRO, ESPELHO MEU
Dismorfia financeira é quando a gente olha para o extrato bancário e vê um monstro que talvez nem esteja lá. A conta até respira, mas você vive com a sensação de que tudo está por um fio. Segundo pesquisa da Credit Karma, quase metade da geração Z e dos millennials sente que está sempre financeiramente atrasada — mesmo quando isso não é verdade.
Agora imagina viver com esse sentimento constante… e ainda tentar consumir de forma consciente. Comprar menos. Escolher melhor. Fazer render.
É aí que mora o conflito. Porque o medo de faltar, que já nos acompanha em silêncio, muitas vezes nos faz comprar no impulso, acumular o que não precisamos ou cair no autoboicote: “já que nunca vou ter dinheiro suficiente, então tanto faz”.
Mas se tem uma coisa que esse sentimento de escassez ensina é que consumir consciente não é só para quem tem muito. Pelo contrário. É um exercício de presença, de freio, de olhar crítico. É deixar de comprar para não endividar — mas também para não gerar mais lixo. É resistir à lógica do “compra agora e resolve depois”.
Viver com consciência financeira e ecológica, ao mesmo tempo, exige um tipo de coragem pouco falada: a de se frustrar. De não ter o que todo mundo tem. De demorar mais para alcançar. De aprender que tudo tem um tempo. Inclusive o nosso.
Por isso, se você sente que o dinheiro nunca dá — respira. Antes de consumir, pergunta: eu preciso mesmo disso? vai durar? de onde vem? e pra onde vai quando acabar? Essas perguntas são ferramentas. E, aos poucos, ajudam a mudar não só a relação com o dinheiro, mas com o mundo. (SM)
DA JANELA LATERAL DO QUARTO DE DORMIR,
Eu vejo um corvo no alto de um poste. Todo dia ele aparece. No primeiro ano morando aqui eu ficava com medo. Acho que a cultura geral, de Edgar Allan Poe e desenho do Pica-Pau, me fizeram pensar que essas criaturas eram malvadas. Aos poucos fui relaxando e criando um fascínio por estas aves. Eu posso passar horas observando-os, junto aos meus gatos, claro. Aprendi que os corvos são incrivelmente inteligentes. Não estou exagerando. Eles são considerados tão espertos quanto alguns primatas, e estudos mostram que têm habilidades cognitivas impressionantes.
Sabe aquelas histórias de pássaros que usam ferramentas? Pois é. Um corvo pode pegar um galho e transformá-lo em um gancho para alcançar comida. A gente já viu isso em desenho animado, né? Taí algo que é verdadeiro. Os corvos possuem uma memória incrível! Conseguem reconhecer rostos humanos e lembrar quem foi gentil ou cruel com eles – por anos! Dá uma olhada nessa história sobre corvos perseguindo mulheres loiras no Canadá! Outro detalhe curioso é que os corvos são ótimos imitadores.
Eles conseguem reproduzir sons de outros animais e até vozes humanas! Isso é particularmente útil para despistar predadores. Portanto, não é só papagaio que "fala".
Corvos também podem ter essa habilidade. Além disso, são animais extremamente sociais e leais. Os corvos são monogâmicos e formam laços duradouros com seus parceiros. Eles trabalham juntos na construção do ninho, na criação dos filhotes e até compartilham a comida. E se um membro do grupo morre, eles realizam algo que parece um tipo de ritual de luto, como se estivessem homenageando o companheiro perdido.
Em muitas culturas, os corvos são associados à morte ou ao azar, mas na verdade, são símbolos de inteligência, transformação e até proteção. Os vikings, por exemplo, consideravam o corvo um mensageiro dos deuses, enquanto para os nativos americanos ele representa mudança e adaptação. Aqui no México, eles chamam de "papai corvo" o pai que realmente paterna.
O que eu mais gosto nos corvos é a atitude. Eles têm essa presença forte e desafiadora. Enquanto outras aves saem voando ao menor movimento brusco, os corvos ficam ali, te encarando com aquele olhar que parece dizer: "E aí, vai encarar?" Como se soubessem que são inteligentes demais para se incomodar com a nossa presença.
Depois de conhecê-los melhor, não consigo mais ver um corvo e ignorar. Eles têm algo enigmático, uma presença que não passa despercebida. E talvez seja justamente essa dualidade – entre o místico e o real, o sombrio e o brilhante – que os torna tão fascinantes. (SM)
CARDAMOMO
Na cozinha, tempero é tudo! Não é à toa que as pessoas imaginam a comida vegana como sem graça: em muitos grupos atuais os temperos são reservados apenas às carnes, ou seja, tira a carne, tira o tempero, fica tudo sem graça. Se você já chegou aqui, imagino que sabe o mínimo de como usar uns temperos pelos vegetais. A gente chega para somar e multiplicar os sabores e saberes, então chega expandiremos seus horizontes com a estrela dessa edição: o cardamomo. Ela que é uma das especiarias que faziam os portugueses irem até a Índia em uma época sem facilidades de deslocamento (imagina a lonjura desse rolê).
Por curiosidade, adorei encontrar essa carta de 1808 de um ministro pedindo para o governador do estado português na Índia e um tenente em Goa que mandem algumas especiarias para o Brasil. Adivinha quem está na lista? Ele mesmo, o maravilhoso cardamomo.
Muitas vezes ele está no meio de uma massala (conjunto de especiarias vendidos juntos), mas aqui vamos recomendar alguns usos em que ele está mais isolado.
Dicas para usar cardamomo na cozinha sabendo que para usar todo seu sabor você deve abrir as bagas e moer as sementes de dentro:
No seu suco grosso de manga com maracujá é só bater junto no liquidificador que é sucesso;
Nas sobremesas de chocolate, brownie e mousse, por exemplo, você pode usar para dar um tchan como se fosse canela;
Como chá ou no seu leitinho vegetal, só não esquece de deixar ele ferver um pouquinho;
No arroz;
Descoberta recente porque estive numa vivência com a nutricionista ayurvédica Marise Berg: no molho de tomate, você refoga ele como se fosse uma cebola, ou até junto com a cebola, pode colocar bastante e se surpreender;
E dizem que com café fica muito bom também.
Obcecada por cardamomo? Precisa usar em tudo isso? Olha que eu tô vendo você temperar tudo com alho e cebola, heim… A magia é variar e temperar! (CE)
TEM QUE LER
“Acredito que um legado de exaustão resida em algum lugar de todos nós, mas especificamente nos corpos daqueles que têm mais melanina na pele. Para os descendentes do trabalho escravizado e para os marginalizados, essa sensação é intensa.”
Imagine uma sala ampla repleta de espaços confortáveis para se tirar um cochilo. Várias mulheres negras se acomodam e descansam. Lindo e raro, não é? Como praticante de yoga e meditação há uns 20 anos no Brasil, tive a massiva companhia de pessoas brancas. O descanso, o relaxamento, o meditar na sociedade que vivemos virou um luxo exclusivo para quem tem mais dinheiro e privilégios. Não é à toa que no livro Descansar é Resistir, Tricia Hersey, fundadora da organização Ministério do Cochilo, sempre associa capitalismo e supremacia branca para fazer seu ousado manifesto pró-descanso dos corpos historicamente mais explorados.
Mas como eu vou descansar se tenho contas a pagar? A Tricia, que também é poeta, artista e ativista, não se propõe a exaurir o tema, mas apresenta esse manifesto com histórias pessoais e consciência do desafio de mudança cultural e política do lance todo. Se durante a leitura você sentir o peso da repetição, continue, pois você vai chegar ao final do livro com a convicção de que descansar é ato político. Com o olhar aguçado para as mazelas do capitalismo e da supremacia branca, você já descansou hoje? (CE)
“Não seremos mais mártires da cultura do trabalho excessivo. Tal cultura é uma colaboração entre a supremacia branca e o capitalismo, que concebem nosso divino corpo como máquina. Nosso valor não está associado ao quanto produzimos. Existe outro caminho. Compartilhamos uma história de extrema desconexão e negação. Ignoramos a necessidade de descanso do nosso corpo e, com isso, perdemos o contato com o espírito. Nosso corpo é o nosso templo. É o único bem que possuímos. Nosso corpo é uma ferramenta de mudança. É um lugar de libertação. Nosso corpo entende. A hora de descansar é agora. Nosso descanso coletivo mudará o mundo porque se fundamenta em um espírito de recusa e ruptura. O descanso é o nosso protesto. É resistência. Descanso é reparação.”
BELEZA VALENTE
Gosta de fotografia contemporânea ou está aberta a gostar? Tem Zanele Muholi no IMS-Paulista e na sua mão - porque tem bastante material aqui nesse site. Na exposição Beleza Valente, que está ocupando um andar inteiro do local, vemos retratos, encontramos pessoas e suas belezas, em liberdade e luta por direitos. Zanele é pessoa não binária e se considera ativista visual, sendo que desde os anos 2000 documenta a vida da comunidade negra LGBTQIAPN+ na África do Sul e no mundo. Uma das séries da exposição - chamada Somnyama Ngomyama - traz autorretratos que tratam de temas como racismo, trabalho, eurocentrismo e sexualidade (foto abaixo). Outra série inclui fotos que Zanele tirou numa residência artística aqui pelo Brasil. Um primor! (CE)
OUTRA LEITURA
Nem só de Feganismo se vive, então aqui vai uma recomendação maravilhosa para você que está no ritmo da leitura:
A bióloga Janine Benyus e a Biomimética no Sumaúma porque “para prosperar temos que abandonar o extrativismo”, totalmente. (CE)
Nossa essa matéria está dispertadora.
Oie! Amei o conteúdo de vocês! <3