Olá, vaquinhas!
Essa edição comete algumas exceções mencionando homens, mas não se preocupem, nosso foco segue sendo exaltar feminismos, anticolonialismos, antiespecismos, mesmo os que não se reconhecem como tal.
Abraço,
Cassimila e Sarah
VACA PROFANA
Lola Rodríguez de Tió (1843-1924) foi uma poeta que transformou palavras em revolução. No século XIX, quando as mulheres eram silenciadas, ela fez de sua poesia um grito de independência para Porto Rico e Cuba. Foi ela quem reescreveu La Borinqueña como um hino de luta, quem acreditou que as ilhas caribenhas eram irmãs e quem, com sua escrita afiada, desafiou o domínio colonial. Seu nome atravessou fronteiras e sua obra foi traduzida na Itália e na França, mas seu coração sempre bateu forte por Porto Rico.
Apesar de se considerar uma mulher livre, não se via como feminista. Mas a história a contradiz. Sua presença foi determinante para dar voz às mulheres e à cultura porto-riquenha, moldando a identidade do país tanto quanto os símbolos que ajudou a consolidar. Quando o exílio a levou para Nova York, em 1895, sua casa tornou-se ponto de encontro de intelectuais e revolucionários. Enquanto muitos aceitavam a dominação estrangeira como destino, Lola escrevia para lembrar que uma nação sem liberdade não é nada.
Quase um século depois, Porto Rico ainda busca sua identidade. Em 2025, Debí Tirar Más Fotos (DTMF), de Bad Bunny, traz reflexões sobre pertencimento e memória, tocando em feridas que nunca cicatrizaram. Benito canta sobre a ilha que Lola tentou libertar, sobre as consequências de um país dividido entre passado e presente, resistência e assimilação. Mas, se hoje Porto Rico ecoa no mundo, é porque vozes como a de Lola nunca se calaram.
Sua poesia segue viva, não apenas nos versos de La Borinqueña, mas na luta das mulheres, no feminismo latino-americano e na cultura porto-riquenha que continua a se reinventar. Da sua Nova York do exílio ao Porto Rico que Benito canta, a ilha segue gritando. E quem escuta, nunca mais esquece. (SM)
QUEM SOMOS QUANDO SOMOS TURISTAS?
Eu não queria dar tanto palco assim a algum homem nestas linhas, porém escutar o novo álbum de Bad Bunny, Debí Tirar Más Fotos (DTMF), foi como abrir uma gaveta de pensamentos que há anos tento organizar. O disco fala sobre saudade, pertencimento e aquele sentimento agridoce de estar entre dois mundos. Para mim, que moro em Tijuana, foi impossível não pensar no que significa ser turista, imigrante, latina – e, às vezes, invasora.
Se você nunca ouviu falar, Tijuana é a fronteira mais visitada e vigiada do mundo. Todos os dias, milhares de pessoas atravessam de um lado para o outro. Alguns buscam trabalho, outros diversão. Mas há um grupo específico que não chega – invade. O turismo estadunidense, tão presente aqui e no resto do México, muitas vezes transforma tradição em mercadoria. Um exemplo recente são as praias mexicanas, onde por gerações mariachis cantam e tocam em suas areias, mas que agora enfrentam campanhas por silêncio. Sim, silêncio. Porque os gringos querem praia, mas sem o barulho da cultura local.
A primeira vez que me senti invasora e não turista foi em Pátzcuaro, Michoacán, onde acontece a mais tradicional celebração do Día de Muertos. Fui no mesmo ano do lançamento de Viva – A Vida é uma Festa e o que deveria ser uma experiência única me deixou desconfortável. A cidade estava lotada de turistas do mundo todo, ansiosos para testemunhar o ritual, mas sem nenhum respeito por ele. Drones sobrevoavam os cemitérios, flashes interrompiam momentos íntimos, gente pisava em túmulos e arrancava enfeites para levar como lembrança. O que era uma cerimônia de luto e memória virou um espetáculo caótico. Ali, entendi o que significa turismo predatório: aquele que devora sem olhar para trás, que transforma rituais ancestrais em atração de parque temático, que chega sem perguntar se é bem-vindo.
Em Turista, Bad Bunny canta sobre essa sensação de que alguém passa pela sua vida sem prestar tanta atenção em você, só aproveitando os bons momentos. “En mi vida, fuiste turista/ Tú solo viste lo mejor de mí y no lo que yo sufría”, canta . E talvez seja essa a maior reflexão: quando viajamos, estamos realmente interessados em conhecer um lugar ou só queremos consumir uma versão dele que nos agrada?
O turismo pode ser uma troca rica e respeitosa, mas também pode ser uma ferramenta de apagamento. Cabe a nós decidir que tipo de presença queremos ser. Se vamos chegar como visitantes ou como invasores. Se vamos ouvir a cultura ou silenciá-la. Se vamos apenas tirar fotos ou aprender a olhar de verdade. (SM)
ESPÉCIE DO MÊS: PEIXE SARGENTO OU CASTANHETA-DAS-ROCHAS (Abudefduf saxatilis)
Se você já fez um passeio por piscinas naturais no Brasil com um simples snorkel provavelmente vai lembrar desses peixinhos de listras pretas e fundo colorido que vai do amarelo ao azul. Se ainda não fez já deve ter visto fotos subaquáticas de pessoas ou famílias de snorkel cercadas por esses peixinhos de águas rasas.
Desavisadas podem pensar “uau! que abundância de peixinhos perto dos corais brasileiros”. O peixe sargento está longe da extinção, mas a concentração deles nessas fotos se dá na verdade pela prática triste de grupos de turismo e fotógrafos de levar ração para atraí-los. Isso é crime ambiental como você pode ver nesta rápida reportagem.
Eu poderia parar por aqui, mas continuo para ter certeza de que me explico. Animais não domésticos não deveriam ser alimentados por humanos e essa prática prejudica todo o ecossistema:
Alimentos usados para atrair geralmente não fazem parte da dieta natural desses peixes, são industrializados e podem fazer mal para eles e para os outros que se alimentam deles. Pode gerar competição entre as espécies e deixar os peixes mais frágeis, dependentes ou doentes.
Todo ecossistema se afeta por interferências como essa porque tudo está interligado. O que eles deveriam estar comendo em vez do pão ou da ração pode se acumular e prejudicar tudo ao redor, por exemplo. Se o turismo é muito e algumas espécies começam a preferir a comida dos humanos, elas podem proliferar e outras podem desaparecer.
Será que a gente podia apenas ir e observar o ritmo do local, ver os peixes sargento que estão por ali de boas sem tirar fotos? (CE)
TEM QUE LER
Estou a cada dia mais encantada com histórias em quadrinhos, unindo minhas paixões: desenhos e histórias. Persépolis é um clássico publicado pela primeira vez em 2000 que há tempos andava na minha lista. É a autobiografia em quadrinhos de Marjane Satrapi, iraniana que vive na França hoje.
A história foi lançada primeiramente em 4 etapas, mas agora você encontra facilmente tudo junto como “Persépolis completo”.
Tudo começa em 1980, quando Marjane, então com 10 anos, vê o véu se tornar obrigatório nas escolas. Logo na primeira página da história, Marjane e seu traço único já me conquistaram. É fascinante observar as meninas, de véu na cabeça ou na mão, brincando no recreio — uma imagem que mistura inocência infantil com as mudanças impostas pelo contexto político e social da época.
Eu não esperava me encantar e me identificar tanto com essa personagem que, a princípio, tem tanto de diferente. Digo “a princípio” pelas lentes do preconceito porque vemos uma mulher de véu e achamos aquilo distante da nossa cultura, achamos que nunca passamos por uma guerra, que nunca mudamos de país - às vezes é só uma questão de nomenclatura. Por isso é tão importante nos aproximarmos através das histórias pessoais e sentirmos a humanidade que compartilhamos: os dramas, as alegrias, os vacilos. Algumas semelhanças minhas com Marjane são fortes como compartilharmos o mesmo dia de aniversário e termos tido sonhos que nos ajudaram em provas importantes (risos). Outras semelhanças são mais sutis, como estados de espírito. Eu me apeguei a ela, eu sofri e ri junto, e atrasei a leitura para que ela não acabasse nunca. Acabou, então venho aqui super recomendar e dizer que já estou pronta para o próximo, Marjane. (CE)
MULHER VIDA LIBERDADE
Esse é o slogan de luta das mulheres iranianas e também o título do novo livro organizado por Marjane Satrapi, que está na minha lista de leituras. Conheci essa expressão através da incrível cantora Mah Mooni, que, por uma feliz coincidência, pude ouvir cantando à capela, de forma improvisada, durante uma peça de teatro sobre refugiados. Descobri que ela, iraniana, era integrante da Orquestra Mundana Refugi, tinha projetos solo e ainda atuava como modelo aqui no Brasil — país para onde veio em busca de mais liberdade. Vejam ela falando nesse vídeo.
Pois é… no Irã as mulheres não podem se apresentar em um palco sozinhas, no máximo podem ser backing vocal de homens ou se apresentar em corais só de mulheres. Para saber mais sobre a história da Mah Mooni, leia aqui. (CE)
HOMENS CULTOS SÃO DIFERENTES?
Gostando de literatura contemporânea brasileira como eu gosto, não pude deixar de me envolver na escuta e reflexões do caso que ganhou dimensões maiores a partir do episódio da Rádio Novelo chamado “CPF na nota?”. Diversos personagens, jornalistas, escritoras e influenciadores da área se manifestaram e muito do que é necessário pontuar já foi dito. Se você não tem ideia do que estou falando, sugiro ouvir o podcast que conta a história da escritora Vanessa Bárbara e da violência psicológica que sofreu do marido e sugiro também ver esse vídeo da Milly Lacombe que chama os homens para ação.
O que faço aqui agora é um comentário breve e apresentação de uma tirinha educativa que já usei e muito nas aulas de Comunicação Não-Violenta.
Sobre pedir desculpas: Saber pedir desculpas e entender a desculpa parece raridade. Li alguns pedidos de desculpas dos homens envolvidos no caso e observei como muitas vezes, mesmo disfarçando, eles partem para a defesa pessoal: “mas eu sou pai”, “não foi bem assim”, “faz tanto tempo”. Expandindo o caso para minha própria experiência, já ouvi coisas como “mas eu sou LGBT”, “mas eu sou de esquerda”. É sempre um “eu, eu, eu”, quando o foco deveria estar no outro: no reconhecimento e lamento sincero, no desejo de reparação.
Sobre entender que violências consideradas “menores” sustentam e autorizam outras violências: nossa sociedade dá mais importância para a violência física e tende a diminuir e relativizar as violências psicológicas. Também temos hierarquias entre as violências mais “pesadas” e mais “leves”. Vejam o que um aliado quadrinista pode desenhar para entendermos: as violências mais corriqueiras sustentam violências mais drásticas, pois promovem a ideia de inferioridade de certos grupos como as mulheres, logo, pare com isso de fazer piadinhas misóginas, gordofóbicas, transfóbicas e etc entre seus amigos, camarada!
Tradução minha da base em direção ao topo: rir de uma piada machista, ignorar uma mulher, aproximar-se sem consentimento, tocar sem consentimento, abusar, estuprar, matar. (CE)