Olá, vaquinha!
Junho chegou pedindo mais chão, mais coragem e mais boca aberta — para comer, cantar e viver.
Cassimila e Sarah
VACA PROFANA
Bertha Benz pegou o carro e foi. Em 1888, enquanto o mundo ainda achava que lugar de mulher era dentro de casa, ela fez 106 km pelas estradas da Alemanha, de Mannheim até Pforzheim, ao volante do primeiro automóvel da história. Sem pedir permissão. Sem esperar aplausos. Parou em farmácia para abastecer, consertou sozinha a ignição com um grampo de cabelo, desentupiu carburador com alfinete de chapéu. Fez história com coragem e pragmatismo — e ainda sugeriu melhorias técnicas no veículo, que viriam a ser adotadas.
Seu nome, por muito tempo, ficou ofuscado pelo do marido, Karl Benz. Mas foi ela quem provou que o carro funcionava — e que mulheres também podiam ocupar o banco da frente.
Mais de 130 anos depois, o documentário Autoescola para Mulheres Sauditas, disponível na HBO Max, mostra a rotina de uma escola de direção em Riade, capital da Arábia Saudita. Sim, estamos falando de um país onde só em 2018 as mulheres passaram a ter o direito de dirigir — e, mesmo assim, esse direito segue frágil, condicionado por leis e normas que seguem tratando o corpo feminino como propriedade do Estado ou da família.
O que mais me tocou no documentário não foi apenas o fato dessas mulheres estarem aprendendo a dirigir, mas o que isso significava para elas. Uma das histórias que me tocou bastante foi de uma das personagens que mora com a mãe e em como elas ansiavam pela carteira de motorista para poder sair para fazer compras, sem precisar da ajuda de um familiar homem.
O ponto comum entre Benz e essas mulheres é o volante — e tudo o que ele representa: liberdade, controle sobre o próprio caminho, possibilidade de fugir, de buscar, de escolher e de usar o carro como sustento também, algo comum para o ocidente. Outra personagem dessa história também usa seu carro como motorista de aplicativo, apesar dos olhares de reprovação e de muitos homens não quererem fazer a corrida com ela por ser mulher.
O documentário mostra que, mesmo com a legalização, o direito de dirigir ainda pode ser frágil. A estrutura patriarcal é resistente. Há famílias que ainda proíbem, maridos que desconfiam. Mas, mesmo assim, elas vão. Passam marcha. Dão seta. Estacionam em linha. Avançam.
Bertha Benz ao tomar aquela estrada de terra com dois filhos, em uma viagem que durou 12 horas, e um tanque improvisado, ela soube que liberdade é isso mesmo: um trajeto que a gente abre com as próprias mãos, mesmo quando ainda não existe caminho. (SM)
TEM QUE LER
“Enchia a língua, fechava a boca e tentava engolir. Sentia que a terra deixava de ser uma coisa na minha mão para ser algo vivo, terra amiga em mim, e continuei comendo.”
Mulheres e a terra, a terra e as mulheres. Aqui numa relação ainda mais potente.
Quando ganhei o livro de Dolores Reyes de presente de uma amiga, ela já avisou: essa escritora foi um dos alvos da campanha de censura do governo Milei. Em um dos protestos contra a censura, em um teatro que foi símbolo da resistência à ditadura argentina, vários escritores fizeram uma leitura coletiva de Cometerra, livro de estreia da Dolores. O livro continuou fazendo sucesso, até o ponto de ter seus direitos comprados para virar série (em breve disponível na Amazon Prime e tenho medo de ver e me decepcionar).
“Cometerra, aqui desaparece gente o tempo todo, aqui seu dom vale ouro. Não sei quantas vezes repeti isso.”
Cometerra já ganhou uma sequência, o romance Miséria, por onde eu curiosamente comecei a leitura e me envolvi a ponto de devorar toda a história (será que vem mais um, Dolores?). A recomendação de hoje é dos dois livros da saga de Cometerra, uma garota que após a morte da mãe descobre o dom de localizar pessoas desaparecidas comendo a terra por onde elas andavam. Elas, principalmente elas. O livro dá conta de retratar a violência pelo lado de quem busca respostas pela periferia, com o desprezo policial e alternativas no mundo das videntes.
“Tinha começado a notar que os que procuram uma pessoa têm algo, uma marca perto dos olhos, da boca, a mistura de dor, raiva, espera, transformada em corpo. Algo quebrado, onde vive aquele que não volta.”
Dolores vem para o Brasil em breve, é também mãe de 7 filhos e professora. Bora ler? (CE)
CÚMBIA
“– O que eu quiser?
Coloquei em uma rádio de cúmbia e embora tentasse disfarçar, dava para ver que aquela música era uma tortura para ele.”
Mais um pouquinho de Dolores Reyes para trazer para vocês esse ritmo latino essencial e tão pouco conhecido no Brasil: a cúmbia. Para ser justa, pelas fronteiras, sim, a cúmbia é mais conhecida e se misturou particularmente bem pela região amazônica. Ritmo que tem origens indígenas e afrolatinas, muito alegre, marcante, mas tem gente que insiste em torcer o nariz.
Sarah e eu pertencemos a um mínimo grupo que teve contato cedo com a cultura dos vizinhos, bailou muita cúmbia e encontrou pouco disso por aqui. No Brasil aproveitamos muitas noites no Conexión Caribe, casa que apostava mais na salsa e no merengue. Só senti a cúmbia chegar mais marcante por aqui com a festa Macumbia que trouxe Celso Piña em 2017.
Corta a cena e acontece em junho de 2025 o primeiro festival de cumbia do Brasil. Uma alegria para mim, dancei horrores, mas não deixei de cultivar minhocas feministas na observação. De mulheres no palco, três: a organizadora super carismática e duas divas da banda La Guacamaya. Lembrei da minha obsessão por bandas só de mulheres e fiz uma nota mental: buscar bandas de cumbia de mulheres.
CHICAS DEL SOL: Maravilhosas do Peru que pela minha pesquisa deram uma sumida. Que bom que temos vídeos no Youtube delas tocando e cantando nesse cenário maravilhoso.
KUMBIA QUEER: Começaram com releituras de músicas famosas como essa da Madonna (La isla con chikas) e seguem firmes e fortes, militando e se divertindo, inclusive com vídeos super bem produzidos como esse futurístico da música Medano e o vídeo abaixo com uma animação bacanérrima sobre ghosting. As argentinas tem um pézinho forte no punk e andam em turnê pela Europa.
Bailando e sonhando com um festival de cúmbia com mais mulheres no palco por aqui. (CE)
ESPÉCIE DO MÊS - GIGANTES HERBÍVOROS
Gente que escolheu se alimentar de plantas costuma ter obsessão por animais herbívoros, principalmente os fortes. Hoje decidi seguir pela Argentina e apresentar para vocês alguns dos gigantes de milhões de anos atrás. A patagônia argentina foi berço de muitos dos maiores dinossauros da Terra, os saurópodes, uma coleção de espécies herbívoras de quatro patas que possuíam pescoços e caudas longos. O subgrupo Titanosauria continha os maiores dos maiores e entre eles estão os hermanos: Patagotitan Mayorum, Argentinosaurus, Saltasaurus e o Dreadnoughtus. Pense aí por volta de 70 toneladas e pense aí no fim do período Cretáceo, há mais de 60 milhões de anos. Eu adoro viajar no tempo assim e pensar nesses gigantes comendo uma grande variedade de plantas, desde algas, galhos até coníferas. (CE)
O QUE TEM PRA MIM?
Ser vegetariana não me fechou portas sociais. Continuo saindo com amigos, indo a festas, participando de reuniões. Mas seria mentira dizer que tudo flui sem ajustes. A verdade é que a vida social de quem não come carne ainda exige jogo de cintura — e, às vezes, um lanche prévio.
Aprendi a me adaptar. Se vou a um bar, é comum comer antes de sair, porque sei que o máximo que vou encontrar é uma porção de batata frita. E nem sempre ela vem ilesa: tem lugar que decide “incrementar” a batata com cheddar, bacon, carne moída. Como se o objetivo fosse dar uma carteirada proteica em quem só queria um prato sem crueldade animal.
No churrasco? Eu levo minha comida. Na reunião de família? Também. Meus amigos, aliás, têm sido ótimos. Muitos checam cardápio antes de marcar restaurante, outros me avisam: “Não sei se vai ter opção pra você, se quiser levar algo…” — e tudo certo. A delicadeza está em avisar, e não em exigir que o mundo gire ao meu redor. Respeito mútuo é o tempero de qualquer relação.
Mas saindo da minha bolha, vejo que isso ainda é tabu. Semana sim, semana não, aparece um post criticando “a convidada vegana que levou marmita no casamento”. Sempre alguém dizendo que isso é “falta de educação”. Que o certo seria “comer o que tem”. A mesma regra, claro, nunca se aplica a quem faz piada com tofu ou se recusa a comer legumes. Tem até o caso do casal vegano que organizou um casamento 100% sem carne — e foi surpreendido pelo irmão da noiva, que pediu pizza pra todos os convidados, porque “ninguém ia aguentar ficar só no grão-de-bico”. Imagine a cena reversa: o casal carnívoro sendo boicotado por pratos de quinoa. Não rola, né?
Qual o limite disso?
Estamos falando de comida — mas também de escolhas, identidades, modos de existir no mundo. Comer é um ato cultural, afetivo, político. E se há espaço para servir risoto de camarão ou carne ao ponto em qualquer ocasião especial, deveria haver também espaço para um prato pensado com respeito às convicções dos outros. Inclusive de quem escolhe não comer animais.
Trazer a própria comida pode parecer radical para alguns. Para mim, é só praticidade. E um lembrete: comer em paz, mesmo quando não se come o mesmo que os outros, também é um direito. (SM)
OS PASSOS QUE A INDÚSTRIA NÃO ACOMPANHA
A ideia dessa pauta nasceu de uma conversa com a minha mãe. Ela está quase chegando aos 70, mas continua praticando esportes, cuidando do corpo, mantendo a cabeça ativa. Ainda assim, o tempo chega. Chega devagar, pelas articulações, pelos reflexos, pela resposta mais lenta do corpo. Recentemente, ela se deparou com um desgaste no joelho. Foi um confronto com a realidade: teve que parar, reduzir o ritmo, aceitar a fisioterapia. E depois me disse uma coisa que ficou martelando: “Voltar a se movimentar é mais lento. E agora eu percebo que as calçadas não ajudam. Nem os sapatos.”
A indústria não ajuda. O belo e o funcional ainda são reservados para os mais jovens. A moda pensa nos corpos tonificados, nos rostos lisos, na elasticidade intacta. A velhice, quando aparece, é celebrada só se vier travestida de juventude. A “melhor idade” precisa estar firme, forte, fashion e funcional — caso contrário, é esquecida nas prateleiras. E, cá entre nós, mesmo quem está firme e forte tem dificuldade de encontrar uma roupa bonita e confortável. Os sapatos? Ou são duros e instáveis, ou são “fisioterápicos”: feios, enormes, com cara de abandono estético. A roupa esportiva? Elásticos apertados, costuras que machucam, tecidos que pressionam e nada acolhem. E a elegância, vai junto com o colágeno?
Minha mãe é uma mulher que se sente jovem — e é jovem, dentro do tempo dela. Mas o mundo não se adapta. Se ela quer manter o ritmo, precisa fazer concessões que não parecem necessárias para os mais novos. Precisa escolher entre conforto e beleza, entre leveza e proteção. E isso diz muito sobre a forma como envelhecer ainda é tratado como um problema — especialmente para as mulheres.
Enquanto isso, a população mundial envelhece. As ruas, as roupas, os serviços — tudo isso ainda gira em torno da juventude. É como se a sociedade dissesse: "ok, você pode envelhecer, mas de preferência sem atrapalhar". Sem ocupar espaço. Sem pedir por tênis bonitos e ortopédicos. Sem questionar o salto alto ou os tecidos apertados. Sem querer continuar ativa, visível, interessante.
Mas nós vamos. Vamos porque queremos e porque precisamos. E talvez seja hora de pensar que o futuro não está só em cremes anti-idade, mas em roupas, espaços e olhares que respeitem a mulher em todas as fases — inclusive quando ela já viveu muito e ainda quer viver muito mais. (SM)